TEXTO PARA ESTUDO: O BRINCAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
O brincar na Educação InfantilTânia Ramos Fortuna
Brincar e aprender
Em recente pesquisa sobre as relações entre jogo e educação segundo o pensamento dos educadores (Fortuna e Bittencourt, 2003), constatamos que proporcionar aprendizagem é o mais freqüente motivo pelo qual o jogo é considerado importante para a educação, em uma amostra onde preponderam educadores de ensino fundamental.
Os educadores infantis, por seu turno, são mais resistentes a assimilar o jogo à aprendizagem, ainda que reconheçam sua importância para o desenvolvimento infantil. Uma hipótese para entender esta posição, já apresentada em outro trabalho (Fortuna, 2000), é que, por muito tempo, a definição de sua identidade profissional baseou-se na oposição brincar versus estudar: a "escolinha" e a creche são lugares de brincar, enquanto a escola (as demais séries do ensino) é lugar de estudar. Outra hipótese é que a disposição de “deixar brincar” é seu modo de insurgirem-se contra as práticas educativas que submetem o tempo passado na escola infantil ao pragmatismo e ao utilitarismo da Economia escolar. No entanto, quando admitem que brincar é aprender, não é no sentido amplo, em plena conexão com o próprio desenvolvimento, e sim como resultado do ensino dirigido, onde tudo acontece, menos o brincar – exatamente como procedem os professores do ensino fundamental, tentando instrumentalizar aquilo que é indomável, espontâneo, imponderável.
Esta separação é deletéria tanto para a educação infantil quanto para o ensino fundamental, pois em ambos os casos a fecundidade da presença do jogo na educação acha-se ameaçada, já que é reduzida ora à reificação do brincar, influenciada pela visão romântica da infância (Brougére, 1998), sob o argumento de que não intervir é preservar sua genuinidade, ora à subordinação extrema aos conteúdos curriculares, quando praticamente não há espaço para a brincadeira propriamente dita.
No caso da educação infantil, qual é, então, o melhor lugar que a brincadeira pode ocupar? Nem tão "largada" que dispense o educador, dando margem a práticas educativas espontaneístas que sacralizam o ato de brincar, nem tão dirigida que deixe de ser brincadeira (Ramos, 2002). Como se faz isso? Qual é o papel do educador em relação ao brincar na educação infantil?
Brincar é uma atividade paradoxal: livre, imprevisível e espontânea, mas, ao mesmo tempo, regulamentada; meio de superação da infância, assim como modo de constituição da infância; maneira de apropriação do mundo de forma ativa e direta, mas, também, através da representação, ou seja, da fantasia e da linguagem (Wajskop, 1995). Brincando, o indivíduo age como se fosse outra coisa e estivesse em outro tempo e lugar, embora, para que a atividade seja considerada brincadeira e não alucinação, ele deve estar absolutamente conectado com a realidade. Provavelmente Ajuriaguerra e Marcelli (apud Fortuna, 2000) consideraram tudo isto para dizer que é um paradoxo querer definir o brincar com demasiado rigor.
Diante destes paradoxos não é de surpreender que não seja possível afirmar categoricamente para que serve a brincadeira. Entretanto, os custos desta atividade são tão elevados para as espécies que brincam, envolvendo gasto de tempo, energia e exposição a riscos, que o retorno, em termos de benefícios, deve ser considerável (Yamamoto e Carvalho, 2002).
Para quem brinca, contudo, a pergunta ‘brincar pra quê?’ é vã, pois brinca-se por brincar, porque brincar é uma forma de viver. Como recordam Yamamoto e Carvalho (op. cit.), o indivíduo que brinca não o faz porque isto o torna mais competente, seja no ambiente imediato, seja no futuro. A motivação para brincar é intrínseca à própria atividade.
Mesmo sem intenção de aprender, quem brinca aprende, até porque se aprende a brincar. Como construção social, a brincadeira é atravessada pela aprendizagem, pois os brinquedos e o ato de brincar, a um só tempo, contam a história da humanidade e dela participam, diretamente, sendo aprendidos, e não uma disposição inata do Homem. Esta aprendizagem é mais freqüente com os pares do que dependente de um ensino diretamente transgeracional (Carvalho e outros, 2003, p. 21). Uma das explicações para isto remonta, possivelmente, ao surgimento do sentimento de infância a partir da modernidade, quando as crianças foram especialmente estimuladas a conviver entre si, na escola, e não mais com os adultos, no trabalho.
Por que, então, é tão difícil para os educadores infantis incluírem-na na escola infantil, sem incorrer na didatização ou no abandono do brincar ?
Apesar deste problema não ser exclusivo da educação infantil, adquire uma original configuração em razão da pendulação histórica entre o ensino dirigido na escola infantil e a proposição de “só brincar” (Brougére, 1998). A associação do jogo à aprendizagem traz consigo o problema do direcionamento da brincadeira, em termos de intencionalidade e produtividade. Brougére (2002) sugere a noção de educação informal para pensar a relação entre jogo e educação sobre novas bases, ainda que admita que a oposição formal versus informal seja muito simplista. O autor explica a formalização como processo em que a intenção educativa pode tornar-se mais consciente ou mais explícita em certas situações até constituir o objetivo principal de uma interação. É deste modo que Brougére chega à afirmação de que o jogo não é naturalmente educativo, mas se torna educativo pelo processo de formalização educativa. Todavia, adverte: “o jogo pode possibilitar o encontro de aprendizagens. É uma situação comportando forte potencial simbólico que pode ser fator de aprendizagem, mas de maneira inteiramente aleatória, dificilmente previsível” (id., p.10).
O lugar do brincar na educação infantil
Até mesmo um rápido olhar sobre a sala de aula de educação infantil permite estimar o papel que desempenha o brincar neste lugar, a começar pelo seu arranjo espacial, ele mesmo favorável ou não ao desenvolvimento da atividade lúdica, uma vez que diferentes arranjos espaciais permitem diferentes atividades lúdicas a partir de diversas modalidades de interação. Pesquisas feitas por Legendre (1983, 1986 e 1987) e, a partir delas, os estudos de Carvalho e Rubiano (1994) em torno da organização do espaço da sala de aula apontam maior concentração de crianças em torno do educador em arranjos com menor ou plena estruturação espacial, e que em zonas circunscritas há maior atividade de faz-de-conta, já que fornecem proteção e privacidade e favorecem a focalização no parceiro e na atividade.
O problema é que, a despeito de muitos educadores deixarem seus alunos brincar, a efetiva brincadeira está ausente na maior parte das classes de educação infantil. E, o que é pior: à medida que as crianças crescem, menos brinquedos, espaço e horário para brincar existem. Quando aparece, é no pátio, no recreio, no dia do brinquedo, não sendo considerada uma atividade legitimamente escolar.
Na verdade, os adultos parecem sentir-se ameaçados pelo jogo devido a sua aleatoriedade e aos novos possíveis que constantemente abrem (Wajskop, op. cit). Seu papel no brincar foge à habitual centralização onipotente e os professores não sabem o que fazer enquanto seus alunos brincam, refugiando-se na realização de outras atividades, ditas produtivas. Na melhor das hipóteses, tentam racionalizar, definindo o brincar como atividade espontânea que cumpre seus fins por si mesma. Na pior das hipóteses, sentem-se incomodados pela alusão à própria infância que o contato com o brincar dos seus alunos propicia, ou confusos quanto ao que fazer enquanto as crianças brincam, muitas vezes não apenas se intrometendo na brincadeira, como tentando ser a própria criança que brinca.
Por outro lado, uma sala de aula cuja visualidade lúdica é excessiva, chegando ao ponto de ser invasiva, distancia as crianças do brincar. Com tantas ofertas de brinquedos e situações lúdicas as crianças não conseguem assimilar as propostas ali contidas, e acabam não interagindo com este material, dispostos somente para enfeite e contemplação, com um papel meramente decorativo. Não são brinquedos para brincar, são "de ver". Outras vezes os brinquedos e as brincadeiras são cercados de tanta proibição, com instruções tão restritivas, que às crianças só resta não brincar – e brigar.
A ação do educador sobre o brincar infantil
A simples oferta de certos brinquedos já é o começo do projeto educativo - é melhor do que proibir ou sequer oferecer. Porém, a disponibilidade de brinquedos não é suficiente. Na escolha e proposição de jogos, brinquedos e brincadeiras o educador coloca o seu desejo, suas convicções e suas hipóteses acerca da infância e do brincar. O educador infantil que realiza seu trabalho pedagógico na perspectiva lúdica observa as crianças brincando e faz disto ocasião para reelaborar suas hipóteses e definir novas propostas de trabalho. Não se sente culpado por este tempo que passa observando e refletindo sobre o que está acontecendo em sua sala de aula (Moyles, 2002, p. 123). Percebe que o melhor jogo é aquele que dá espaço para a ação de quem brinca, instiga e contém mistérios. Mas não fica só na observação e oferta de brinquedos: intervém no brincar, não para apartar brigas ou para decidir quem fica como o quê, ou quem começa ou quando termina, e sim para estimular a atividade mental, social e psicomotora dos alunos, com questionamentos e sugestões de encaminhamentos. Identifica situações potencialmente lúdicas, fomentando-as, de modo a fazer a criança avançar do ponto em que está na sua aprendizagem e seu desenvolvimento (Moyles, id.). Não exige das crianças descrição antecipada ou posterior das brincadeiras, pois se assim fizer não estará respeitando o que define o brincar, isto é, sua incerteza e improdutividade (Kishimoto, 2002), embora esteja disponível para conversar sobre o brincar antes, durante e depois da brincadeira. Enfim, realiza uma animação lúdica.
Para fazer tudo isto o educador não pode aproveitar a "hora do brinquedo" para realizar outras atividades, conversar com os colegas, merendar, etc. Ao contrário: em nenhum momento da rotina na escola infantil deve o educador estar tão inteiro e ser tão rigoroso - no sentido de atento às crianças e aos seus próprios conhecimentos e sentimentos - quanto nesta hora.
Em linhas gerais, é necessário que o educador insira o brincar em um projeto educativo, o que supõe intencionalidade, ou seja, ter objetivos e consciência da importância de sua ação em relação ao desenvolvimento e à aprendizagem infantil. Este projeto educativo, no entanto, não passa de ponto de partida para sua prática pedagógica, jamais ponto de chegada definido rigidamente de antemão, pois é preciso renunciar ao controle, centralização e onisciência do que ocorre com as crianças em sala de aula. De um lado, o educador deve desejar - a dimensão mais subjetiva de "ter objetivos" - e, ao mesmo tempo, deve abdicar de seus desejos - no sentido de permitir que as crianças, tais como são na realidade, advenham, reconhecendo que elas são elas mesmas, e não aquilo que ele, educador, deseja que elas sejam. Será a ação educativa sobre o brincar infantil contraditória, paradoxal? Sim, tal como o brincar!
Referências bibliográficasBROUGÉRE, G. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artmed, 1998.
BROUGÉRE, G. Jogo e educação: novas perspectivas. 2002. Dig. 11 p.
CARVALHO, M. I. C. e RUBIANO, M. B. Organização do espaço em Instituições pré-escolares. In: MORAES, Z. (org.) Educação infantil: muitos olhares. São Paulo: Cortez, 1994.
CARVALHO, A. M. C. e outros (org.). Brincadeira e cultura: viajando pelo Brasil que brinca. São Paulo: Casa do Psicológo, 2003. v. 1 e 2
FORTUNA, T. R. Sala de aula é lugar de brincar? In: XAVIER, M.L.F. e DALLA ZEN, M.I.H. Planejamento: análises menos convencionais. Porto Alegre: Mediação, 2000 (Cadernos de Educação Básica, 6) p. 147-164
FORTUNA, T. R. Vida e morte do brincar. Espaço pedagógico. Passo Fundo, v. 8, n. 2, p. 63-71, dez. 2001.
FORTUNA, T. R. e BITTENCOURT, A. S. D. Jogo e educação: o que pensam os educadores. Porto Alegre: UFRGS, 2003. Dig. 14 p.
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